O dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, é um momento para reconhecer que a história das mulheres transcende o universo feminino, conectando-se às crianças, famílias, expressões culturais e artísticas, além das esferas do trabalho, política, educação e diversos outros campos.
Como parte essencial desse processo, é fundamental resgatar, reunir e preservar os registros das trajetórias femininas, suas conquistas e desafios, assegurando que esses legados sejam valorizados pelas gerações futuras.
Essas histórias contemplam tanto as mulheres anônimas, marcadas pela resistência silenciosa, quanto aquelas que se destacaram publicamente, rompendo barreiras e estereótipos. Apenas pela recuperação dessas vozes e trajetórias poderemos construir um retrato mais amplo, complexo e verdadeiro da formação histórica brasileira.
Para celebrar essas histórias, selecionamos 9 mulheres que marcaram a história do Brasil: Bertha Lutz, Antonieta de Barros, Chiquinha Gonzaga, Dandara dos Palmares, Carmen Miranda, Zilda Arns, Maria Quitéria, Elza Soares e Clara Filipa Camarão.
A seguir, apresentamos suas biografias em reconhecimento ao seu papel transformador em nossa sociedade.
Bertha Lutz (1894–1976)
Nascida em São Paulo, em 2 de agosto de 1894, Bertha Maria Júlia Lutz foi uma importante zoóloga, política e diplomata brasileira. Filha de Adolfo Lutz, renomado médico e epidemiologista de origem suíça, e de Amy Marie Gertrude Fowler, enfermeira britânica, Bertha despertou desde cedo interesse pelos direitos das mulheres. Formou-se em ciências naturais, biologia e zoologia pela Universidade de Paris – Sorbonne, e posteriormente, concluiu o curso de Direito na UniversidadeFederal do Rio de Janeiro.
Durante seus estudos na Europa, teve contato com o movimento sufragista militante, que viria a influenciar sua trajetória na luta pelos direitos das mulheres. Além de sua militância política, atuou como naturalista no Museu Nacional do Brasil, especializando-se no estudo de rãs venenosas — seu nome foi eternizado em quatro espécies de rãs e duas espécies de lagartos.
Ao retornar ao Brasil, em 1918, ingressou na Legião da Mulher Brasileira, atuando como diretora administrativa. Em 1920, Bertha cofundou, ao lado de Maria Lacerda de Moura, a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher, que buscava inserir as mulheres no meio científico. Dois anos depois, fundou a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), organização que uniu mulheres de várias regiões do Brasil e, além das questões socioeconômicas, passou a reivindicar o direito ao voto.
Bertha também teve papel fundamental no cenário internacional, participando de campanhas feministas e sufragistas interamericanas. Representou o Brasil na Conferência Pan-Americana de Mulheres, em Baltimore (1922), e foi eleita, em 1925, presidente da União Interamericana de Mulheres. Sua liderança foi decisiva para que as mulheres brasileiras conquistassem o direito ao voto.
Também foi representante do Brasil na Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional, onde assinou a Carta das Nações Unidas e defendeu a inclusão do Artigo 8º.
Antonieta de Barros (1901–1952)
Antonieta de Barros quebrou barreiras ao se tornar a primeira mulher negra deputada estadual no Brasil, representando Santa Catarina. Nascida em Florianópolis, ela dedicou sua vida à educação e à luta porigualdade, focando especialmente no acesso à educação para mulheres e pessoas negras.
Seu jornal "A Semana", fundado em 1922, abriu espaço para discutir temas importantes como direitos das mulheres e arte. Antonieta defendeu causas fundamentais como o direito ao voto feminino e uma educação mais inclusiva, ajudando a construir um Brasil mais justo.
Um de seus maiores legados foi a fundação da Escola Antonieta de Barros em 1930, uma instituição pioneira no ensino superior para mulheres. Seu trabalho mudou a vida de centenas de estudantes, preparando-as para serem cidadãs ativas e independentes.
Reconhecida postumamente por sua contribuição à educação, recebeu título de doutora honoris causa pela UFSC. Durante seus dois mandatos como deputada estadual, foi uma incansável defensora da educação pública, lutando pela profissionalização do magistério e pela democratização do ensino. Sua visão progressista incluía iniciativas para expandir o acesso educacional, especialmente para grupos marginalizados.
Sua importância histórica foi celebrada em 2023 com a inscrição de seu nome no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria. Entre suas contribuições legislativas mais duradouras está a criação do Dia Nacional do Professor, comemorado em 15 de outubro.
Chiquinha Gonzaga (1847–1935)
Chiquinha Gonzaga foi uma artista revolucionária que mudou para sempre a música brasileira. Como compositora, pianista e regente, ela criou lindas melodias que misturavam sons europeus com ritmos brasileiros e africanos, como o choro e o maxixe. Numa época em que as mulheres tinham poucas oportunidades, seu exemplo abriu portas para outras artistas seguirem seus sonhos.
Chiquinha era filhade uma mãe parda e de um pai branco e rico, que se tornaria marechal após seu nascimento. Teve como padrinho Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias. Para sua mãe, mulher mestiça e pobre, o nascimento da filha foi um momento delicado, principalmente pelo temor de que o pai não reconhecesse sua paternidade.
Aos 16 anos, Chiquinha Gonzaga casou-se com Jacinto Ribeiro do Amaral, oficial da Marinha Imperial, em um casamento arranjado por seu pai, apesar de sua oposição. O casamento foi marcado por abusos e pela rejeição de sua carreira musical. Incapaz de suportar a situação, Chiquinha pediu o divórcio, levando apenas seu filho mais velho, já que o marido impediu que ela levasse os filhos mais novos. Após a separação, seu pai a deserdou.
Após separar-se do marido, Chiquinha Gonzaga sustentou-se como musicista independente, dando aulas e tocando piano em lojas. Enfrentou críticas por criar um filho sozinha, mas dedicou-se inteiramente à música, tornando-se uma compositora de sucesso de polcas, valsas e tangos. Foi a primeira mulher a participar do grupo de choro de Joaquim Callado e a primeira mulher brasileira a reger um concerto. Seu primeiro grande sucesso foi a polca "Atraente", em 1877. Apesar da fama, enfrentava críticas da sociedade masculina, mas seguiu compondo obras importantes como a valsa "Walkyria”Foi a primeira mulher a comandar uma orquestra no Brasil
Além de se destacar como Chiquinha lutou pelos direitos dos artistas e pela igualdade. Ela criou a primeira organização para proteger os direitos autorais no Brasil e usou sua fama para ajudar outros através da educação musical.
Hoje, sua história continua inspirando pessoas que sonham em fazer a diferença através da arte, mostrando que é possível quebrar barreiras e transformar a sociedade com talento e determinação.
Dandara dos Palmares (falecida em 1694)
Dandara dos Palmares foi maiores líderes do Quilombo dos Palmares, ao lado de seu esposo Zumbi. Sua história representa um dos mais importantes capítulos da resistência contra a escravidão no Brasil. Como guerreira habilidosa e conselheira política , ela lutou incansavelmente pela liberdade de seu povo.
Palmares foi o maior e mais importante quilombo do Brasil, estabelecido no final do século XVI na capitania de Alagoas, no Nordeste. O território era formado por diversos mocambos (comunidades do tamanho de vilarejos) que se uniram para criar um reino neo-africano. Sua população incluía tanto brasileiros quanto africanos, principalmente das regiões centro-ocidentais como Angola.
Embora não existam registros sobre o nascimento de Dandara, é provável que ela tenha nascido no Brasil e se mudado para Palmares ainda menina.
Em 2019, seu nome foi eternizado no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria, reconhecendo sua crucial participação nas decisões do Quilombo.
O Quilombo dos Palmares compreendia uma rede de povoados independentes que manteve sua autonomia durante décadas, enfrentando investidas de forças coloniais. Durante uma negociação crucial em 1678, enquanto o líder Ganga Zumba considerava um acordo diplomático com a Coroa Portuguesa, surgiu uma divisão interna. Uma importante liderança feminina questionou os termos propostos, preocupada com as implicações para a liberdade da comunidade. Sua influência foi decisiva para que Zumbi assumisse uma posição de resistência. Os registros históricos divergem quanto ao desfecho final em 1694, com diferentes narrativas sobre o destino desta líder durante o conflito decisivo.
O legado deste período é celebrado anualmente em 20 denovembro, data que marca o Dia da Consciência Negra no Brasil.
A história de Dandara é um símbolo poderoso de resistência e coragem. E seu legado é celebrado anualmente em 20 de novembro, data que marca o Dia da Consciência Negra no Brasil.
Carmen Miranda (1909–1955)
O talento singular de Carmen Miranda a projetou das rádios brasileiras para o estrelato internacional. Nascida em Portugal em 1909 e criada no Brasil, sua ascensão artística começou nas ondas do rádio, onde sua voz cativante rapidamente chamou atenção. Foi em 1939 que sua carreira tomou um rumo decisivo, quando o produtor Lee Shubert a convidou para estrelar The Streets of Paris na Broadway, abrindo as portas para sua conquista da América.
Em Hollywood, sua presença magnética a transformou em fenômeno cultural. De apresentações em casas noturnas a grandes produções cinematográficas, Carmen se tornou a artista feminina com os maiores cachês da indústria. No entanto, sua fama veio acompanhada de limitações artísticas: o cinema americano a aprisionou no papel da "latina exótica", uma imagem estereotipada que, embora lucrativa, comprometia sua versatilidade.
A política de Boa Vizinhança dos anos 1940 aproveitou sua imagem para aproximar Estados Unidos e América Latina, mas ao custo de reduzir toda uma riqueza cultural a clichês simplistas. Essa caracterização provocou reações amargas em sua terra adotiva — quando visitou o Brasil em 1940, Carmen encontrou não aplausos, mas críticas. Seu retorno definitivo só aconteceria às vésperas de sua morte, em 1955. Apesar das controvérsias, seu pioneirismo abriu caminhos para a internacionalização da cultura brasileira, deixando uma marca indelével na história doentretenimento global.
Zilda Arns (1934–2010)
Uma das figuras mais notáveis na área da saúde pública brasileira, Zilda foi a médica pediatra que revolucionou o atendimento às comunidades vulneráveis, implementando programas inovadores que impactaram milhões de vidas.
Como fundadora de Pastoral da Criança voltada para o bem-estar de crianças e idosos carentes, sua visão transformadora ultrapassou as fronteiras da medicina tradicional. Graduada pela Universidade Federal do Paraná em 1959, desenvolveu uma abordagem única que combinava saúde preventiva com ação social, estabelecendo uma rede nacional de assistência que oferecia suporte nutricional, educacional e médico às populações mais necessitadas.
O reconhecimento de suas contribuições culminou com sua inclusão no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria em 2023. Zilda faleceu tragicamente durante uma missão humanitária no Haiti em 2010, mas seu legado permanece vivo através das instituições que fundou.
O alcance de seu trabalho humanitário ultrapassou fronteiras geográficas e culturais, resultando em sua indicação ao Prêmio Nobel da Paz. A Igreja Católica, reconhecendo seu extraordinário compromisso com os menos favorecidos, iniciou seu processo de canonização em 2015. Como a décima segunda mulher inscrita no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, seu exemplo continua motivando novas gerações a trabalhar por uma sociedade mais equitativa.
Maria Quitéria (1792–1853)
Maria Quitéria, heroína baiana da Independência do Brasil, é um exemplo inspirador de coragem e determinação. Em uma época em que mulheres não podiam servir no exército, ela desafiou todas as regras ao se disfarçar de homem para lutar contra as tropas portuguesas, demonstrando que bravura não tem gênero.
Nascida em uma família simples de agricultores, Maria desenvolveu desde cedo habilidades extraordinárias em atividades como caça e manejo de armas. Quando decidiu se juntar ao exército para defender o Brasil, enfrentou a oposição de seu pai. Mesmo assim, não desistiu: criou uma nova identidade e se alistou, provando seu valor no campo de batalha.
Sua participação foi decisiva em importantes batalhas como Concepción, Itapúa e Pituba. Em 1823 o próprio Imperador Pedro I a recebeu no Rio de Janeiro, concedendo-lhe a patente de tenente e a prestigiosa Ordem Imperial do Cruzeiro do Sul - a primeira vez que uma mulher soldado recebia tal honraria.
Após sua carreira militar, casou-se com Gabriel Pereira de Brito e teve uma filha. Viveu seus últimos anos em Salvador, onde faleceu aos 61 anos. Sua história continua inspirando gerações e mostrando que, com determinação, podemos quebrar barreiras e lutar por nossos ideais.
Elza Soares (1930–2022)
Elza nasceu em 23 de junho de 1930 na comunidade Moça Bonita, no bairro de Padre Miguel, seu pai era operário e guitarrista, e sua mãe, Rosária Maria da Conceição, era lavadeira. Aos 12 anos, Elza foi obrigada pelo pai a se casar com e um ano depois deu à luz seu primeiro filho. Participou de seu primeiro concurso de calouros na Rádio Tupi porque precisa de dinheiro para comprar remédio para seu filho, aos 25 anosElza era viúvia e já tinha 5 filhos e trabalhava como lavadeira e como operária numa fábrica de sabão para sustentar as crianças.
Com extensa experiência musical como crooner em boates e restaurantes, usou sua versatilidade para incorporar diferentes estilos em seu repertório, desde música popular brasileira até gêneros internacionais como jazz e rock.
Além de seu talento vocal, Elza destacou-se pelo engajamento social, revelação de novos artistas e reconhecimento internacional, como o título de Cantora do Milênio pela BBC (1999) e prêmios no Grammy Latino (2003 e 2016). Sua trajetória tornou-se símbolo de resistência e superação para muitos negros e negras do Brasil que enfrentam desigualdades históricas.
Hoje, o impacto de Elza vai muito além da música. A Casa da Mulher Elza Soares, criada em sua homenagem, ajuda mulheres em situação vulnerável, oferecendo apoio e serviços gratuitos. Este projeto mostra como sua luta por justiça e igualdade continua transformando vidas, fazendo dela um verdadeiro símbolo de resistência e mudança social no Brasil.
Clara Filipa Camarão
Clara Filipa Camarão (século XVII), indígena potiguara nascida na região do rio Potengi em Natal, destacou-se como figura proeminente durante o período das invasões holandesas em Pernambuco.
Sua atuação como líder militar durante os conflitos coloniais representa um importante capítulo na historiografia brasileira, especialmente no contexto da resistência indígena ao domínio europeu.
Em parceria com seu marido Filipe Camarão, Clara comandou um contingente de guerreiras indígenas em diversos embates estratégicos. Sua trajetória militar desafiou as convenções sociais da época,estabelecendo um precedente histórico significativo para a participação feminina em conflitos armados. O reconhecimento oficial de sua importância histórica, materializado através de sua inscrição no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, consolida sua relevância no panteão de personalidades históricas brasileiras.
O legado histórico de Clara Camarão transcende sua participação nos conflitos coloniais, constituindo um importante símbolo de resistência e autonomia indígena.
Em Tejucupapo, Pernambuco, manifestações culturais contemporâneas preservam sua memória através de representações dramáticas que celebram o protagonismo feminino indígena. Sua narrativa histórica não apenas exemplifica a resistência aos processos coloniais, mas também destaca a importância fundamental das contribuições femininas e indígenas na construção do tecido social brasileiro.
Conclusão
O Dia Internacional da Mulher nos oferece uma oportunidade para destacar essas e tantas outras figuras que, com seus sonhos, lutas e conquistas, construíram alicerces fundamentais na história do país. Da música às ciências, da política ao trabalho social, das batalhas militares aos palcos internacionais, as mulheres brasileiras provaram ser agentes vitais de transformação e desenvolvimento. Conhecer e divulgar esses legados não apenas enriquece nossa compreensão do passado, mas também inspira novas gerações a persistirem na busca por igualdade e justiça.
Referências
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