As grandes navegações do século XV marcaram uma ruptura na concepção europeia do mundo e do Oceano Atlântico. As viagens de exploradores como Bartolomeu Dias, que contornou o Cabo da Boa Esperança em 1488, abriram novas possibilidades para chegar ao Oriente pelo sul. Essa conquista influenciou indiretamente Portugal a concentrar seus esforços nessa rota, enquanto Castela investia na exploração a oeste. Em 1492, Cristóvão Colombo partiu de Palos e, ao retornar de sua viagem às Américas, apresentou ao rei português, D. João II, o descobrimento de novas terras.
Vamos fazer uma viagem no tempo e compreender como esses eventos influenciaram diretamente a formação do nosso país.
A Bula Inter Coetera
A Bula Inter Coetera foi um documento papal emitido em 4 de maio de 1493, que estabeleceu a divisão das terras recém-descobertas entre Portugal e Espanha. A bula determinava que o "novo mundo" seria dividido por um meridiano situado a 100 léguas a oeste do arquipélago de Cabo Verde. Segundo o documento, "tudo o que estivesse a oeste desse meridiano seria espanhol, e o que estivesse a leste, português" (BULA INTER COETERA, 1493).
O texto da bula declarava: "Esta bula origina-se de termos feito doação, concessão e dotação perpétua, tanto a vós (reis), como a vossos herdeiros e sucessores (reis de Castela e Leão), de todas e cada uma das terras firmes e ilhas afastadas e desconhecidas, situadas em direção do ocidente, descobertas hoje ou por descobrir no futuro, seja descoberto por vós, seja por vossos emissários para este fim destinados" (BULA INTER COETERA, 1493, p. 1).
Essa divisão visava evitar conflitos entre as potências marítimas emergentes da época. No entanto, o rei de Portugal, D. João II, não ficou satisfeito com a divisão proposta, pois ela restringia suas ambições de expansão e controle sobre rotas comerciais importantes, especialmente aquelas em direção à Índia.
O Tratado de Tordesilhas: Redefinindo Fronteiras
O Tratado de Tordesilhas, assinado em 7 de junho de 1494, transcendeu uma simples delimitação territorial entre Portugal e Castela. Ele refletia os interesses políticos e econômicos de ambos os países em plena expansão marítima e colonial. O tratado não apenas definia o controle de territórios, mas também abrangia rotas comerciais lucrativas, a propagação da fé católica e a afirmação de poder frente a outras nações europeias .
Em 1492, Cristóvão Colombo chegou às Antilhas — acreditando ter alcançado o Mar da China. Portugal prontamente contestou a posse dessas novas terras, desencadeando uma disputa que culminou na assinatura do Tratado de Tordesilhas em 1494. Este acordo dividia o mundo em dois hemisférios por meio de uma linha imaginária traçada a 370 léguas a oeste das Ilhas de Cabo Verde (TRATADO DE TORDESILHAS, 1494, p. 2). As terras a oeste dessa linha pertenceriam à Espanha, enquanto as a leste seriam de Portugal.
Essa redefinição de fronteiras atendeu aos interesses portugueses e evitou um conflito direto entre as duas nações. O documento expressa claramente essa intenção:
[...] para o bem da paz e da concórdia, e para a preservação da relação e do amor entre o referido Rei de Portugal e os referidos Rei e Rainha de Castela, Aragão, etc., sendo este o desejo de Suas Altezas, eles, seus referidos representantes, agindo em seus nomes e em virtude dos poderes aqui descritos, pactuaram e concordaram que uma fronteira ou linha reta fosse determinada e traçada de norte a sul, de polo a polo, no referido oceano, do Ártico ao polo Antártico (TRATADO DE TORDESILHAS, 1494, p. 3).
No entanto, o Tratado de Tordesilhas gerou muitas controvérsias. Na época, não havia tecnologia suficiente para determinar com precisão a localização da linha imaginária. Apenas no final do século XVII, os holandeses desenvolveram técnicas mais precisas de medição de longitudes, permitindo uma demarcação mais exata.
A Expansão Territorial e o Tratado de Madri
Durante os séculos XVI e XVII, exploradores e colonos portugueses ultrapassaram os limites estabelecidos pelo Tratado de Tordesilhas (1494), adentrando profundamente o interior da América do Sul. Essa expansão foi impulsionada por expedições conhecidas como Entradas e Bandeiras, além do desenvolvimento da pecuária e da mineração. O processo resultou em conflitos territoriais com a Espanha, especialmente após a fundação da Colônia do Santíssimo Sacramento pelos portugueses em 1680, no sul do atual Uruguai.
Para resolver essas disputas, em 1750, foi assinado o Tratado de Madri entre D. João V de Portugal e D. Fernando VI de Espanha, visando redefinir as fronteiras coloniais na América do Sul. O tratado baseou-se nos princípios do uti possidetis — "quem possui de fato, possui de direito" — e das fronteiras naturais, como rios e montanhas, para delimitar os novos territórios. Dessa forma, Portugal consolidou seu controle sobre vastas áreas que hoje compõem o território brasileiro, legitimando as expansões realizadas nos séculos anteriores.
O Tratado de Madri reconheceu a presença portuguesa em áreas estratégicas, como a bacia do Amazonas, conforme expresso no próprio texto do tratado:
"[...] a coroa de Portugal tem ocupado as duas margens do rio dos Amazonas, ou Marañon, subindo até a boca do rio Javarí [...] sucedendo o mesmo pelo interior do Brasil com a internação que fez esta coroa até o Cuiabá e Mato Grosso" (TRATADO DE MADRI, 1750, p. 5).
Embora o Tratado de Madri tenha sido anulado em 1761 e posteriormente substituído pelo Tratado de Santo Ildefonso em 1777, muitas das fronteiras estabelecidas permaneceram, moldando significativamente a configuração territorial atual do Brasil.
Organização do Território Brasileiro após o Tratado de Madri
Em suma, o Tratado de Madri foi um marco fundamental na definição das fronteiras do território brasileiro. Ele antecipou, em grande medida, os contornos que viriam a se consolidar como as fronteiras atuais do Brasil. A aplicação prática dos limites acordados exigiu um esforço massivo por parte das coroas portuguesa e espanhola, especialmente sob a liderança do Marquês de Pombal, que priorizou essa delimitação em suas políticas territoriais.
Para garantir a efetividade do tratado, foram organizadas expedições demarcatórias compostas por geógrafos, matemáticos, padres, engenheiros cartógrafos e militares. Essas expedições não apenas tinham a missão de demarcar as fronteiras coloniais, mas também de criar uma base cartográfica detalhada do território sul-americano, fornecendo informações cruciais para o reconhecimento e a consolidação dos limites brasileiros.
O impacto social e cultural dessas expedições demarcatórias foi significativo. Os povos indígenas, que possuíam o conhecimento mais profundo sobre os territórios a serem demarcados, foram explorados tanto para o trabalho forçado quanto para a ocupação de suas terras. Isso levou à desfiguração de suas culturas e modos de vida pré-existentes. Essa violência territorial foi parte integrante do projeto colonial que visava expandir o poder metropolitano português no contexto da competição comercial europeia.
Conclusão
A Bula Inter Coetera, o Tratado de Tordesilhas e o Tratado de Madri são mais do que documentos históricos; são peças-chave para entender como o mundo foi dividido e como as nações que conhecemos hoje foram moldadas. Ao estudar esses acordos, compreendemos melhor as complexas relações de poder, interesses econômicos e ambições que definiram a era das grandes explorações marítimas.
É fascinante pensar como decisões tomadas há mais de cinco séculos ainda impactam nossas vidas, não é? A história é repleta de surpresas e conexões inesperadas que nos ajudam a entender o presente.
Referências
- ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no atlântico sul, séculos XVI e XVII. São Paulo:Companhia das Letras, 2000.
- MONTEIRO, John Manuel. "Negociações Territoriais e Políticas Coloniais: O Tratado de Tordesilhas e Seus Desdobramentos." História Unisinos, v. 7, n. 1, 2003.
- FERREIRA, João Paulo. A formação do território brasileiro: O impacto dos tratados de Tordesilhas e Madri. São Paulo: Editora História Viva, 2005.
- FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (org). O Brasil colonial. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2014.
- HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. Rio de Janeiro e São Paulo: Difel, 1960