A transferência da Família Real portuguesa para o Brasil em 1807 foi um marco na história colonial brasileira. Impulsionada pelas guerras napoleônicas e pelo bloqueio continental imposto por Napoleão Bonaparte, esta mudança desencadeou profundas transformações políticas, econômicas e sociais que moldaram o Brasil moderno. Este artigo explora o cenário internacional que levou à transferência, o contexto na colônia antes da chegada da Corte, os desafios enfrentados durante a viagem e as consequências duradouras desse movimento histórico.

1. Contexto Histórico

Guerras Napoleônicas e o Bloqueio Continental

No início do século XIX, a Europa estava imersa nas guerras napoleônicas, com a França de Napoleão enfrentando a Inglaterra numa luta pelo domínio continental. Em 1807, Napoleão impôs o Bloqueio Continental, uma estratégia para enfraquecer a economia britânica ao interromper o comércio entre a Inglaterra e o continente europeu. Portugal, aliado tradicional da Inglaterra, representava uma brecha significativa nesse bloqueio, tornando-se alvo da agressão napoleônica.

ROWLANDSON,Thomas. O Progresso do Emperador Napoleão. Publicado por Rudolph Ackermann em 1808.
ROWLANDSON,Thomas. O Progresso do Emperador Napoleão. Publicado por Rudolph Ackermann em 1808.

Diante da iminente invasão francesa, o Príncipe Regente Dom João tomou a decisão estratégica de transferir a Corte portuguesa para o Brasil. Entre 25 e 27 de novembro de 1807, cerca de 10 a 15 mil pessoas embarcaram em navios portugueses, protegidos pela esquadra inglesa. Este êxodo incluiu ministros, conselheiros, juízes, membros do clero e uma vasta burocracia. Além disso, foram transportados o tesouro real, arquivos governamentais, máquinas de impressão e bibliotecas — que mais tarde dariam origem à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

A Colônia Antes da Chegada da Corte

Antes da chegada da Família Real, o Brasil vivia o apogeu do ciclo do ouro. A mineração dominava a economia, embora a cana-de-açúcar, a pecuária e a nascente lavoura cafeeira também tivessem papéis significativos. O atraso de Portugal na Revolução Industrial levou a um endividamento considerável com a Inglaterra, saldado com o ouro extraído no Brasil.

No plano administrativo, a colônia era regida por um Governador-Geral, cuja autoridade centralizadora, instituída em 1548, substituiu o sistema de Capitanias Hereditárias. As relações entre governadores-gerais e donatários eram frequentemente tensas, evidenciando o conflito entre o poder central e as administrações regionais.

2. A Família Real no Brasil

A travessia da Corte portuguesa rumo ao Brasil foi marcada por inúmeros desafios que testaram a resiliência dos viajantes. Durante a jornada, uma tempestade severa dividiu a frota, resultando em navios superlotados e escassez de suprimentos essenciais como alimentos e água. A marinha inglesa, que protegia a esquadra, forneceu mantimentos improvisados para a troca de roupas. Mesmo diante desses contratempos, a chegada da Família Real em 7 de março de 1808 à baía de Guanabara foi recebida com grande entusiasmo pela população do Rio de Janeiro.

DEBRET, Jean-Baptiste. Estudo para a Chegada de D. Leopoldina ao Brasil, 1818.
DEBRET, Jean-Baptiste. Estudo para a Chegada de D. Leopoldina ao Brasil, 1818.

A chegada da Família Real portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808 trouxe profundas transformações políticas e econômicas para a colônia. Dom João VI, atuando como Príncipe Regente, centralizou o poder na capital e decretou a abertura dos portos às "nações amigas", encerrando o monopólio comercial de Portugal. Essa medida permitiu ao Brasil estabelecer relações comerciais diretas com a Inglaterra, beneficiando os proprietários rurais ao eliminar as restrições impostas pela metrópole. No entanto, também aumentou a dependência econômica do Brasil em relação à Inglaterra, pois as políticas tarifárias favoreceram os produtos manufaturados ingleses, dificultando o desenvolvimento das indústrias locais e moldando de maneira duradoura a economia colonial.

Dom João VI promoveu uma série de melhorias urbanas e investimentos em infraestrutura para acomodar a corte e fortalecer as instituições governamentais. Além disso, a expansão urbana resultou na pavimentação de novas ruas, alargamento das estradas e melhorias significativas no abastecimento de água, saneamento e iluminação pública.

Cerimônia do Beija-Mão.

A cerimônia do beija-mão era um ato público que estabelecia contato direto entre o monarca e seus súditos, simbolizando a autoridade e o papel paternal do rei. Durante o ritual, o súdito se aproximava, ajoelhava-se diante de Dom João VI e beijava sua mão estendida antes de se retirar. A presença direta do monarca nas cerimônias representou uma mudança significativa nas práticas simbólicas da corte brasileira. Anteriormente, o vice-rei conduzia a cerimônia em nome do regente. Com a chegada da Família Real portuguesa, Dom João VI passou a participar ativamente desses rituais, centralizando a família real nos eventos oficiais. Amigos e futuros aliados do rei aguardavam ansiosamente a chegada dos novos membros da corte, desejando integrar-se ao círculo real e participar das solenidades.

Cerimônia de beija-mão na Corte de D.João VI, Brasil, século XIX.
Cerimônia de beija-mão na Corte de D.João VI, Brasil, século XIX.

Além de seu valor simbólico, a cerimônia influenciou aspectos práticos da sociedade brasileira. Em 1817, devido às frequentes viagens de Dom João VI à Fazenda de Santa Cruz para o ritual, estabeleceu-se o primeiro sistema de transporte público do Brasil, criando um serviço de coches que ligava a cidade às residências reais. Essa inovação, mantida posteriormente por Dom Pedro I e Dom Pedro II, demonstrava como as práticas monárquicas podiam impactar a infraestrutura urbana.

A Administração de Dom João VI – Príncipe Regente – no Brasil

Com a instalação da Corte Portuguesa no Brasil, o país tornou-se a nova sede de fato e de direito do poder político do Reino Lusitano. Dom João VI promoveu diversas mudanças e benfeitorias significativas, entre as quais se destacam:

  • Estabelecimento de Manufaturas: A autorização para criar manufaturas no Brasil, incluindo a produção de munições e armamentos, permitiu que o país exportasse esses produtos para Portugal. Isso fomentou o desenvolvimento industrial na colônia e reduziu sua dependência das importações da metrópole.
  • Criação de Instituições Culturais e Financeiras: Foram fundadas a Academia de Belas Artes, o Teatro São João (atual João Caetano), o Museu Nacional/UFRJ, o Observatório Astronômico, o Jardim Botânico, a Biblioteca Nacional, o Banco do Brasil e a Imprensa Régia.
  • Academia Real Militar: Sua criação institucionalizou o ensino regular de ciências no Brasil. Embora focada inicialmente na ciência bélica, a Academia tornou-se um centro de estudos das ciências matemáticas e de observação.
  • Elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal e Algarves: O Brasil deixou de ser uma colônia e passou a ter o mesmo status político de Portugal, ganhando o direito de enviar deputados às Cortes de Lisboa. Essa mudança foi crucial para a emancipação política do território e ajudou Portugal a conter movimentos revolucionários.
  • Arquivo Central: Criado para reunir mapas, cartas geográficas do Brasil e projetos de obras públicas.
  • Instituições de Ensino e Pesquisa: Foram estabelecidas as Escolas de Cirurgia e a Academia de Marinha (1808), a Academia Médico-cirúrgica (1813) e o Laboratório de Química (1818), impulsionando o desenvolvimento científico no país.
  • A Missão Francesa: Chegou ao Rio de Janeiro em 26 de março de 1816 para criar a Imperial Academia e Escola de Belas-Artes. Composta por pintores, escultores, arquitetos e artesãos, a missão revolucionou o panorama das Belas Artes no país. Introduziu o sistema de ensino superior acadêmico e fortaleceu o Neoclassicismo. O grupo, liderado por Joachim Lebreton, incluía artistas renomados como Jean-Baptiste Debret, Nicolas-Antoine Taunay, seu filho Félix Taunay, e Auguste-Henri-Victor Grandjean de Montigny. A presença desses e outros profissionais estrangeiros — como botânicos, zoólogos, médicos, etnólogos e geógrafos — trouxe novas informações ao Brasil e o tornou mais conhecido internacionalmente através de publicações em livros, jornais e revistas.

Impactos da Chegada da Família Real no Rio de Janeiro

A chegada da Família Real portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808 provocou transformações profundas na estrutura urbana e social da cidade. Para acomodar os acompanhantes da corte, o Conde dos Arcos instituiu um sistema de aposentadorias que, na prática, requisitava as residências dos moradores locais para abrigar a nobreza. Este processo resultou na exibição das letras "PR" (Príncipe Regente) nas portas das casas, interpretadas pela população como uma ordem para que se mudassem para as ruas.

SALATHÉ, Friedrich. Gravura da Praça XV, 1825-1834.
SALATHÉ, Friedrich. Gravura da Praça XV, 1825-1834.

Entre 1808 e 1822, a área do Rio de Janeiro triplicou, refletindo o rápido crescimento populacional impulsionado pela chegada da corte. O afluxo massivo de pessoas agravou problemas urbanos como a escassez de moradia, a deficiência no abastecimento de água, o saneamento inadequado e a falta de segurança pública. A nobreza portuguesa criticava as condições precárias das acomodações em comparação com as residências luxuosas de Lisboa. Enquanto isso, a população mais pobre foi relegada a áreas marginalizadas como Catumbi e Mata-Porcos, onde vivia em choças apertadas entre morros e o mar, evidenciando a profunda desigualdade social.

Também mudavam os costumes das famílias, quebrando a reclusão do lar para as mulheres, que passaram a frequentar os espaços públicos, como as ruas e os teatros, e também a se dedicar à leitura de livros e ao estudo de outros idiomas. Multiplicavam-se as lojas de moda e os cabeleireiros, frequentados por senhoras ricas que não queriam fazer feio diante das damas da corte. Outra medida do príncipe regente permitiu a qualquer pessoa a abertura de escolas de primeiras letras, na maioria das vezes funcionando na casa do próprio professor. Os filhos das famílias mais abastadas eram educados, em suas casas, por preceptores. Permanecia, entretanto, o trabalho escravo, necessário às atividades braçais nas casas, sobrados e chácaras dos senhores.

Muitos dos donos de escravos, entretanto, não os utilizavam apenas no serviço doméstico. Para aumentar seus rendimentos, empregavam seus escravos como "negros de ganho" e "negros de aluguel". Os negros de ganho trabalhavam nas ruas, sendo obrigados a dividir com os senhores o que ganhavam. Os negros de aluguel eram alugados a outras pessoas, a quem prestavam serviços. Uns vendiam de porta em porta todo tipo de mercadoria: aves, verduras, legumes, doces, licores, etc.; outros armavam seus tabuleiros em esquinas movimentadas, nas escadarias das igrejas e nas praças, oferecendo aos gritos os artigos à venda. Essa utilização dos escravos rendia um bom lucro aos seus senhores e, por isso, alguns deles chegavam a ter mais de 40 escravos nessas condições.

DEBRET, Jean-Baptiste. Mulheres vendendo Comida no Rio de Janeiro, 1830.
DEBRET, Jean-Baptiste. Mulheres vendendo Comida no Rio de Janeiro, 1830.
DEBRET, Jean-Baptiste. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, Paris, 1834.
DEBRET, Jean-Baptiste. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, Paris, 1834.

Apesar dos avanços promovidos pela presença da Família Real, a expansão econômica também trouxe consequências negativas. O tráfico de escravos intensificou-se significativamente, com o número de cativos triplicando entre 1808 e 1822, o que intensificou as práticas coloniais exploratórias. Além disso, a centralização do poder e as melhorias urbanas, embora modernizassem a capital e beneficiassem a elite, ampliaram as desigualdades sociais. A população pobre foi deslocada para áreas marginalizadas, enfrentando condições precárias de vida, enquanto a nobreza portuguesa se queixava das acomodações, considerando-as inferiores às de Lisboa. Essas dinâmicas sociais ilustram as complexas interações entre desenvolvimento econômico e desigualdade social durante o período colonial brasileiro.

Além das mudanças físicas, a presença da corte catalisou um florescimento cultural e científico no Rio de Janeiro. No entanto, essas melhorias também acentuaram as desigualdades sociais: enquanto a elite desfrutava das novas instituições e infraestrutura, a população pobre enfrentava condições de vida precárias nas áreas marginalizadas. Essas dinâmicas refletem a complexa interação entre desenvolvimento urbano e disparidades sociais durante o período colonial brasileiro.

3. O Retorno da Família Real a Portugal

Em 26 de abril de 1821, Dom João VI, acompanhado pela Rainha D. Carlota Joaquina e pelo Príncipe D. Miguel, iniciou sua jornada de retorno a Portugal, deixando o Brasil após mais de uma década de administração real. A comitiva real, composta por aproximadamente quatro mil pessoas, partiu de maneira discreta e apressada, refletindo o clima de incerteza política que permeava tanto o Brasil quanto a metrópole. A partida silenciosa de Dom João VI simbolizava seu enfraquecimento político, pois ele retornava a Portugal já sob pressão das Cortes Portuguesas para restabelecer o controle colonial e reverter as concessões feitas durante sua estadia no Brasil. A ausência da Corte portuguesa no Rio de Janeiro deixou o herdeiro Dom Pedro de Alcântara como líder, cuja boa relação com a elite agrária e as lideranças pró-independência foi crucial para o avanço do movimento emancipacionista.

Frères, Firmin Didot. Partida da Rainha: para se dirigir a bordo do navio Real destinado a conduzir sua Corte a Lisboa [Iconográfico] Impresso em Paris [França], 1839.
Frères, Firmin Didot. Partida da Rainha: para se dirigir a bordo do navio Real destinado a conduzir sua Corte a Lisboa [Iconográfico] Impresso em Paris [França], 1839.

A Revolução Liberal do Porto, em 1820, foi um marco crucial que levou à convocação das Cortes Portuguesas para elaborar uma nova constituição e implementar reformas que incluíam a restauração do monopólio comercial lusitano sobre o Brasil e a exigência do retorno de Dom João VI a Portugal, reestabelecendo Lisboa como capital do Reino. Tais imposições foram recebidas com resistência pela liderança política brasileira, que encarava com desdém as decisões das Cortes que ameaçavam reverter as concessões já obtidas.

O retorno de Dom João VI a Portugal intensificou as tensões entre as Cortes Portuguesas e a liderança brasileira, exacerbando o descontentamento nas províncias que almejavam autonomia. As Cortes, empenhadas em restabelecer o monopólio comercial lusitano e centralizar o poder, implementaram medidas que visavam reverter as reformas econômicas e políticas benéficas ao Brasil. A imposição de novas tropas, a transferência de instituições governamentais para Lisboa e a exigência do retorno de Dom Pedro a Portugal catalisaram a resistência brasileira. O Clube da Resistência e um abaixo-assinado com oito mil assinaturas pressionaram Dom Pedro a permanecer no Brasil, culminando no "Dia do Fico" em 9 de janeiro de 1822. Este ato decisivo marcou a ruptura definitiva com Portugal e acelerou o processo de independência, resultando na emancipação do Brasil. Assim, o retorno da Família Real não apenas simbolizou a tentativa de reasserção do domínio colonial, mas também fortaleceu o anseio por autonomia e identidade nacional entre os brasileiros, pavimentando o caminho para a independência de 1822.

4. Conclusão

O processo de independência do Brasil foi acelerado pelas tensões entre as reformas de Dom João VI e as exigências das Cortes Portuguesas. Eventos decisivos como a Revolução Pernambucana de 1817 e o Dia do Fico em 1822 foram cruciais. Influenciados por ideais iluministas e pelo descontentamento com a centralização do poder e os altos custos impostos à colônia, esses movimentos abriram caminho para a emancipação política do Brasil. A liderança de Dom Pedro I e José Bonifácio foi essencial para consolidar a independência, resultando na formação do Brasil como nação soberana e no desenvolvimento de uma identidade nacional única.

A vinda da Família Real portuguesa ao Brasil não só transformou a estrutura administrativa e econômica da colônia, mas também lançou as bases para o desenvolvimento cultural e científico que definiria o Brasil moderno. As reformas e instituições estabelecidas nesse período deixaram um legado duradouro, preparando o terreno para a independência e moldando profundamente a trajetória histórica do país. Ao celebrar mais de dois séculos de independência, é crucial reconhecer a importância desse período na formação da identidade e das instituições brasileiras, refletindo sobre as conquistas e desafios que forjaram a nação que conhecemos hoje.

5. Mind Map

  • ABREU, M. de A. A Evolução Urbana no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPP, 2008.
  • ASSUNÇÃO, Paulo de. Ritmos da Vida: momentos efusivos da família real portuguesa nos trópicos. Rio de Janeiro. Ed. Arquivo Nacional, 2008.
  • DEBRET, Jean-Baptiste. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, Paris, 1834-39, 2, pls 30 and 24
  • FAPESP. Um Corte na História do Brasil. Bicentenário da Vinda da Família Real Exige Reflexão Historiográfica. 2008. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/um-corte-na-historia-do-brasil/
  • FAUSTO, Boris. História do Brasil / Boris Fausto. São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
  • MALERBA, Jurandir. A corte no exílio: Civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência (1808-1821), Cia das Letras, São Paulo, 2000.
  • MARTINS, Ismênia de Lima. “Corte Joanina”. In: NEVES, Lúcia Bastos Pereira das; VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Joanino. Rio de Janeiro. Objetiva, 2008.
  • MULTIRIO. A vida na corte e as transformações na cidade do Rio de Janeiro. Disponível em: https://multirio.rio.rj.gov.br/index.php/historia-do-brasil/brasil-monarquico/8854-a-vida-na-corte-e-as-transformações-na-cidade-do-rio-de-janeiro