Vigiando árvores, dirigindo as manadas de porcos-do-mato, arrancadas de veados e de pacas, assobiando estridentemente, passa a figura esguia e torta do Curupira, o mais vivo dos deuses da floresta tropical.— CASCUDO, L. Geografia dos Mitos Brasileiros.

Você já ouviu falar do Curupira? Essa entidade mística é uma das figuras mais antigas e fascinantes do folclore brasileiro. Conhecido como o protetor incansável das florestas, o Curupira é uma lenda que transcende gerações, carregando consigo histórias de proteção à natureza e respeito ao meio ambiente. Vamos explorar a origem, as características e a importância desse personagem tão emblemático.

O Curupira é considerado o guardião das florestas, pântanos e bosques. Com seus pés voltados para trás, ele confunde aqueles que tentam desrespeitar a natureza, fazendo-os se perderem em seus domínios. Ele é especialmente rigoroso com aqueles que causam danos predatórios à floresta e aos seus habitantes, principalmente fêmeas grávidas e animais com filhotes.

Origem

O Curupira, cujo nome deriva do tupi-guarani e significa “corpo de menino” — de curu, abreviação de curumi, e pira, que significa "corpo" —, é uma figura mítica considerada o gênio protetor das florestas. Na cultura indígena, ele é visto como um espírito que age de maneira benéfica ou maléfica conforme o comportamento daqueles que adentram seu território. A lenda do Curupira está entre as mais antigas do folclore brasileiro, com origens indígenas profundas, embora sua criação específica seja difícil de localizar. Foi primeiramente registrada no Brasil em 1560 pelo padre jesuíta José de Anchieta, que descreveu o Curupira de forma única.

Conforme relatado por Anchieta, os indígenas acreditavam que o Curupira, a quem chamavam de "certo demônio", frequentemente castigava aqueles que desrespeitavam a mata: “É coisa sabida e pela boca de todos corre que há certos demônios, a que os Brasis chamam Corupira, que acometem aos Índios muitas vezes no mato, dão-lhes de açoites, machucam-nos e matam-nos. São testemunhas disto os nossos Irmãos, que viram algumas vezes os mortos por eles. Por isso, costumam os Índios deixar de certo caminho, que por ásperas brenhas vai ter ao interior das terras, no cume da mais alta montanha, quando por cá passam, penas de aves, abanadores, flechas e outras coisas semelhantes, como uma espécie de oblação, rogando fervorosamente aos Curupiras que não lhes façam mal” (Anchieta, 1560, Carta de São Vicente).

Exploradores portugueses que chegaram ao Brasil nos séculos seguintes também registraram suas impressões sobre essa figura, observando como a lenda se difundia por diferentes regiões e variava de acordo com a localidade. Esses registros reforçam a ideia de que o Curupira era reconhecido de Norte a Sul, assumindo nomes e características específicas conforme as culturas locais.

Os Curupiras são conhecidos por apreciar itens que não existem em sua dimensão original, como fumo, aguardente e pequenos objetos que consideram intrigantes. Essas oferendas, quando deixadas pelos que entram na floresta, podem garantir a passagem segura sob a vigilância do Curupira. Além disso, há uma série de “leis da floresta” estabelecidas pelo Curupira, como a proibição da caça aos domingos à tarde e a caça além do necessário. Aqueles que desrespeitam essas regras são punidos fisicamente, embora sem marcas visíveis, mas com intensidade suficiente para manter a lembrança.

Características

O Curupira é uma figura mágica e protetora das florestas no folclore brasileiro, com aparência de um jovem de baixa estatura, pele bronzeada e cabelos de tons intensos de vermelho, laranja e amarelo. Sua característica mais notável é a posição de seus pés, voltados para trás, que confunde os rastros e afasta aqueles que tentam segui-lo. Em algumas versões, ele aparece com pelos vermelhos, dentes verdes ou até enormes orelhas, simbolizando sua diversidade de formas e poderes.

As habilidades do Curupira vão além de seu aspecto físico; ele usa truques e ilusões para desorientar caçadores e invasores da floresta. Seu assobio estridente e ensurdecedor confunde as vítimas e as deixa perdidas, incapazes de identificar de onde vem o som. Além disso, ele é capaz de se disfarçar de animais como pacas e onças, atraindo caçadores para o interior da mata, onde eles acabam se perdendo. Batendo seus calcanhares contra as árvores, o Curupira as torna mais resistentes e alerta os animais sobre possíveis perigos, reforçando seu papel de guardião da floresta.

Vindo de uma terra mítica chamada Pindorama, o Curupira cruza para o mundo humano através de árvores que funcionam como portais. Ele vive de frutas, folhas e fungos, mantendo um equilíbrio natural e sem necessidade de caça. Curupiras protegem a floresta daqueles que abusam dos recursos naturais, mas podem fazer acordos com pessoas que respeitam a natureza, oferecendo-se como guias ou afastando ameaças. Aos que tentam enganá-lo ou destruir a floresta, o Curupira reserva uma série de truques e armadilhas, reforçando sua missão de manter a harmonia e a proteção do ambiente natural.

Curupira na Cultura Popular

O Curupira é uma figura central nas lendas e no imaginário dos habitantes da floresta amazônica e dos seringais. Para muitos desses moradores, ele transcende o folclore e é visto como uma presença real e ativa, desempenhando o papel de guardião das matas. Monteiro Lobato (1921) em sua obra O Saci descreve o Curupira como um protetor feroz das florestas, evidenciando sua importância: “— O Curupira! — sussurrou o saci, quando um vulto apareceu. — Veja... Tem cabelos e pés virados para trás. — Parece um menino peludo — murmurou Pedrinho. — E é isso mesmo. É um menino peludo que toma conta da caça nas florestas. Só admite que os caçadores cacem para comer. Aos que matam por matar, de malvadeza, e aos que matam fêmeas com filhotes que ainda não podem viver por si mesmos, o Curupira persegue sem dó.” (Lobato, 1921, p. 32).

Na tradição oral, o Curupira é descrito como um ser generoso, que orienta os habitantes das margens dos rios e das florestas em momentos de necessidade. Ele usa os animais como guias para ajudar caçadores a encontrar alimentos ou a saída da floresta, sendo visto, em muitos relatos, como um “anjo protetor” do equilíbrio natural. Contrariando a visão demonizada que alguns lhe atribuem, muitos moradores o reconhecem como um símbolo de generosidade e justiça, agindo para manter a harmonia entre humanos e natureza.

O Curupira é amplamente celebrado em festividades folclóricas e representado em várias obras literárias e artísticas que reforçam sua missão de proteção da natureza. Em eventos culturais, ele é reconhecido como um ícone da riqueza natural e cultural do Brasil. Além disso, sua figura é usada em programas de educação ambiental, promovendo o respeito e a preservação das florestas e da biodiversidade. Essas iniciativas fazem do Curupira um modelo de harmonia com a natureza, incentivando as novas gerações a valorizar e cuidar do patrimônio ecológico brasileiro.

Conclusão

O Curupira é mais do que um mito; é a personificação dos valores de respeito e proteção ao meio ambiente. Sua lenda, antiga e profundamente enraizada na cultura brasileira, continua relevante nos dias de hoje, nos lembrando da importância de preservar nossas florestas e da harmonia que devemos manter com a natureza.

Ao conhecermos e compartilharmos histórias como a do Curupira, contribuímos para a valorização do nosso patrimônio cultural e para a conscientização sobre a necessidade urgente de conservar o meio ambiente para as futuras gerações.

Referências

  • ALVES, Januária Cristina. Abecedário de personagens do folclore brasileiro: e suas histórias maravilhosas, São Paulo: FTD: Edições Sesc, 2017.
  • Anchieta, J. de. (1560). Carta de São Vicente.
  • BRUNEL, Pierre Dicionário de Mitos Literários. 2a ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.
  • CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos Mitos Brasileiros. 2a ed. Rio de Janeiro: José Olympio/MEC/INL, 1976. (Coleção Documentos Brasileiros, v. 52).
  • CASCUDO, Luís da. Antologia do Folclore Brasileiro. V. 1. Rio de Janeiro: Global, 2001.
  • CASCUDO, L. Geografia dos Mitos Brasileiros. Belo Horizonte: Itatiaia Limitada, 1983.
  • FERNANDES, F. O Folclore em Questão. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  • LOBATO, Monteiro. O Saci. São Paulo: Brasiliense, 2005.